Wednesday, October 11, 2006

Entre a Vitrine e o Sonho.

Ele deu uma longa golada na cerveja, olhando pra mim, como se mergulhasse no meu corpo, de olhos bem abertos, conseguindo enxergar meu útero, minhas veias, artérias, os miolos efervescentes do meu cérebro; e degustasse o tempero misturado de tudo isso, junto à cevada.
Apoiou a latinha na arquibancada da arena, na praça dos arcos, sob a lua reluzente. E não olhava pra ela. Continuava mirando em mim, sem piscar.

E eu olhava pra ela, olhava pra ela.

Sentia que cada vez mais a pupila dele dilatava, e delatava o desejo, enquanto sorria e passava a língua nos lábios - quase incontrolável ver aqueles lábios sem beijar, e querer sentir gosto de preliminar perfeita. - Entoou a voz de menino, tentou fazer grossa pra dar mais moral à barba de homem, querendo descobrir, carinho, pegada. Pegou forte meu braço, e perguntou quando nos conheceríamos de verdade.

A verdade dos navios que se cruzavam em guerra. Canhões, cólicas, crises convulsivas, vômitos, larvas e miasmas. Crianças gritando, panela chiando, televisão cantando Disney.

À essa altura eu já não olhava nem pra ela, nem olhava pra ela.

Minhas pálpebras pesavam, mas se levantaram, devagar. Pare. A placa de trânsito bem na minha frente dizia: pare.

Os carros frearam; trânsito congelado. Só se via luzes, de todas as cores; faróis, lanternas, outdoors, os BR’s verde-amarelo dos postos de gasolina. Tonteavam, ofuscavam. Os meninos esqueléticos da Lapa não corriam mais, os pipocos de tiro do morro de Santa, e o batuque da fina flor do samba do outro quarteirão silenciaram, o trance estacionou, pick-ups desligadas, o burburinho amarelado da multidão-voz abafou, o orgasmo do casal atrás do carro; ad infinitum.
Pessoas-estátuas, ali, com lágrimas-gargalhadas cristalizadas no rosto. Cervejas empedradas em copos vagabundos de plástico, cabelos plastificados refletiam o dourado das bolsas Louis Vuitton, que se misturavam aos meninos-dourados da rua. Sem medo.

Ele ainda olhava pra mim. Engoli o ar, e não me atrevi a pegar a latinha de cerveja pra desentalar o bolo vazio, que se instalou entre a garganta e meu peito. Não conseguia me mexer.
Evoquei todos os demônios. Queria ser inoculada por maldade.
Implorava uma tragédia que chamasse sua atenção.
Estalei os dedos, um a um. Comi os lábios, as carnes mortas do interior da boca. Olhei dentro dos olhos dele, tentando dizer.
Eu era resto de construção desmoronada, decadente. De impossível restauração. A maioria dos meus dias terminava no boteco da saída do túnel, implorando uma dose extra de vodka barata, fumando filtro de cigarro, com filhos mortos de fome chorando na barra da saia.
Ainda assim, sempre paro olhando pra ele, e observo minuciosamente seus detalhes, vendo a configuração mais concreta do meu desejo.
Mas quando encosto as mãos na vitrine, quase entrando, lembro que meu coração é pobre, e que os demônios que sempre evoquei são ainda mais presentes hoje. Só me deixam sonhar.

O que me resta é olhar pra ela. Olhar pra ela (?)

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Menina! Que delícia hein!
Sempre bons esses momentos...

4:25 PM  

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